Sobre a ReKro

A ReKro é filha da esperança com o descontentamento.

Descontentamento com um capitalismo eficiente para produzir riquezas (à custa de uma catastrófica degradação ambiental em escala global), mas estruturalmente incapaz de distribuí-la com equidade e justiça.

Descontentamento, também, com o crescimento do conservadorismo, embalado em “valores” como individualismo, consumismo e competitividade, aos quais, muitas vezes, se acrescentam o racismo, a xenofobia, o machismo e a homofobia.

Descontentamento, por fim, com o cansaço de vermos os resíduos de um marxismo militante, desgastado e enredado em sua própria crise, repetir fórmulas velhas e influenciar até mesmo alguns movimentos sociais; e com o marxismo acadêmico se mostrando, a despeito de algumas inegáveis contribuições teóricas, incapaz de apontar para a construção de um amanhã verdadeiramente diferente do ontem e do hoje.

Não nos conformamos com esse quadro. Somos, por isso, decididamente, inconformistas.

Ao mesmo tempo somos movidos por uma grande esperança. Esperança que se enraíza na percepção de que, pelo mundo afora, multiplicam-se os protestos, as revoltas e as experimentações político-sociais. É motivo de otimismo, igualmente, verificar que vários movimentos emancipatórios que têm emergido nas últimas décadas se valem, claramente, de modos de organização e elementos discursivos que têm origem nas tradições libertárias: autogestão, horizontalidade, mandatos revogáveis etc.

O nome Rede Reclus-Kropotkin de Estudos Libertários (ReKro) é uma homenagem, a nosso ver plenamente justificada, a dois geógrafos anarquistas – Élisée Reclus (1830-1905) e Piotr Kropotkin (1842-1921) – que contribuíram para a causa da liberdade com suas ideias e seus exemplos de vida. O nome da rede, com essa homenagem, não pretende sugerir que se trata de uma exclusividade de geógrafos de formação. De jeito nenhum!

Trata-se de uma rede aberta a todas as pessoas, independentemente de terem qualquer formação universitária ou qualquer vínculo acadêmico; basta que elas tenham interesse e disposição para refletir, estudar e debater as questões que o conjunto dos participantes considerar pertinentes (e, a partir daí, tenham ânimo para organizar coisas).

Aliás, advirta-se, tampouco se pressupõe que os participantes sejam anarquistas em sentido estrito. O pensamento libertário, sem dúvida, foi, durante mais de um século – na segunda metade do século XIX e até meados do século XX –, praticamente sinônimo de anarquismo. Contudo, hoje em dia, não é mais razoável tomar o pensamento e a práxis libertários simplesmente como sinônimos de anarquismo. Surgido e desenvolvido em circunstâncias históricas precisas, como uma resposta crítica endereçada, ao mesmo tempo, contra o capitalismo (e seu Estado) e contra aquilo que Bakunin chamou de “comunismo autoritário” (isto é, o marxismo), o anarquismo da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX continua e merece continuar a ser uma fonte de inspiração importante. Entretanto, não seria sensato ignorar as ressalvas que, de pontos de vista um pouco diferentes, mas igualmente comprometidos com a oposição simultânea ao capitalismo e ao “socialismo burocrático” e suas premissas teórico-filosóficas, e às vezes do interior de suas próprias fileiras, têm sido levantadas com relação a vários aspectos da tradição.

Por esse motivo, é justo e oportuno reconhecer que, ao lado do anarquismo clássico, vertentes neoanarquistas (como, por exemplo, a “ecologia social” e o “municipalismo libertário” de Murray Bookchin) e o pensamento autonomista (filosoficamente representado, sobretudo, pela obra de Cornelius Castoriadis, e nos últimos anos vivificado, adaptado e “reinventado” pela práxis e pelas reflexões que têm sido cultivados por alguns movimentos sociais de diversos continentes, com destaque para a América Latina) têm colaborado para manter vivo o espírito libertário.

Nós, da ReKro, enxergamos o pensamento libertário como algo em constante transformação; como algo vinculado a uma práxis emancipatória e a uma conduta baseada em valores mais humanos, como uma forma de intervenção e de interação com o mundo – e não, de modo algum, como uma ideologia pronta e acabada. Valorizamos a ação e visamos à ação, mas sabemos muito bem do valor não menos relevante da reflexão e do estudo, sem os quais aquela, além de míope ou mesmo cega, rapidamente resvala para o sectarismo e o dogmatismo. E essa valorização simultânea da busca apaixonada pelo conhecimento e do engajamento firme por uma sociedade livre e tolerante é, diga-se de passagem, uma das lições mais fundamentais a serem extraídas da vida e da obra de Reclus e Kropotkin.

 

Primavera de 2012